Dia da Visibilidade Trans: o que é e como é ser transgênero no Brasil
"Elas não estão escolhendo entre batata e vergura, elas estão falando sobre quem são", afirma especialista
Nesta segunda-feira, 29 de janeiro, comemora-se o Dia da Visibilidade Trans, data instituída com o objetivo de aumentar a conscientização sobre a letra T da sigla LGBTQIA+, que representa as pessoas travestis, transexuais e transgêneras.
Anualmente, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulga na data um relatório compilando os assassinatos e demais formas de violência contra pessoas trans no Brasil durante o ano anterior.
O relatório será entregue na tarde desta sexta para o Fundo de População da ONU (UNFPA, na sigla em inglês) e para a Embaixada da Noruega. No relatório de 2020, referente a 2019, o número foi preocupante: o Brasil registrou 124 assassinatos de pessoas transgênero naquele ano.
Para o psiquiatra Alexandre Saadeh, que há 30 anos trabalha com questões de identidade de gênero, persiste no Brasil um desconhecimento muito grande sobre questões de gênero e orientação sexual.
Saadeh coordena o Ambulatório Transdiciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), do Hospital das Clínicas da USP. Lá, comanda uma equipe de profissionais da saúde voluntários que atendem crianças e adolescentes que procuram o ambulatório em busca de aconselhamento sobre o tema.
Em entrevista à CNN, o psiquiatra respondeu algumas das dúvidas mais comuns a respeito da população trans. A primeira, simples e direta, foi: O que significa dizer que uma pessoa é trans?
“Trans é uma redução para dizer que a pessoa é transgênero, o que significa essencialmente que a criança nasce, tem um sexo reconhecido de acordo com a genitália, mas possui uma identidade de gênero que, ou é oposta a que corresponde à genitália, ou condiz com algo intermediário”, explica.
Essencialmente, uma pessoa é trans, portanto, quando nasce biologicamente homem mas não se identifica assim, seja por se reconhecer como mulher ou, então, por se colocar em algum outro ponto dentro do espectro entre o masculino e o feminino — em geral, pessoas conhecidas pelo termo “não-binário”.
Quando a pessoa se identifica com o sexo biológico se utiliza o termo “cisgênero”.
Questionado sobre qual é a diferença entre ser trans e ser gay ou lésbica, o psiquiatra explica que há uma divisão muito importante nessa seara, entre o que é identidade de gênero e o que é orientação sexual.
“É uma divisão didática e acadêmica, sendo identidade de gênero a forma como a pessoa se identifica e a orientação sexual como o desejo que a pessoa manifesta por um determinado sexo”, explica.
Portanto, um homem trans que se atrai por mulheres é considerado heterossexual, apesar de ter nascido biologicamente mulher.
Por que algumas pessoas são trans?
O psiquiatra Alexandre Saadeh argumenta que a transexualidade é um fenômeno histórico, registrado em diversas sociedades ao longo dos séculos, mas que, apesar disso, ainda não foi plenamente compreendido pela ciência.
O caráter histórico da existência de pessoas trans leva parte da comunidade médica a acreditar em uma base biológica para o fenômeno. Linhas de pesquisa em estado inicial apontam para uma possível correlação com o período de desenvolvimento cerebral, durante a gravidez.
Segundo Saadeh, em sua experiência de consultório há um padrão nítido para as angústias manifestadas pelos pacientes.
Em geral, os relatos são de um descompasso que vem desde a primeira infância e, quando a descoberta é já na fase adulta, do sentimento de “performar uma personalidade que não é a delas”. “Como se fossem atores interpretando um personagem”, explica.
O psiquiatra explica que uma parcela grande dos casos que chegam em consultórios não acabam evoluindo para uma transição, sendo oscilações normais de homens que adotam trejeitos tidos como femininos ou vice-versa, mas que se identificam com o sexo biológico.
“O mais normal é que a criança que nasça com o sexo masculino se identifique dentro do que a sociedade entende como sendo menino. Uma pequena parcela se identifica com o oposto ou com algo intermediário”, afirma.
Alexandre Saadeh rejeita a tese de que seja algo como uma “escolha” e brinca:
Elas não estão escolhendo entre batata frita e verdura. Elas estão falando sobre quem elas são e isso é muito profundo
A transição
Não há regra nem roteiro claro para o que fazer em casos de pacientes que se identificam como pessoas trans. Em primeiro lugar, porque, segundo o psiquiatra, nunca é o médico quem determina um “rótulo” para a identidade de gênero do paciente e sim o próprio que conclui, diante das ferramentas do processo terapêutico, qual é a sua identidade.
Da mesma forma, Saadeh explica que a transição só acontece depois de um tratamento longo e cauteloso. Principalmente a corporal, que, em geral, é irreversível.
“A destransição é um horror total, porque realmente houve uma falha. Felizmente não tivemos nenhum caso no ambulatório do HC até hoje”, diz.
Os procedimentos a serem adotados, sempre com acompanhamento médico especializado, dependem das manifestações do paciente. O mais comum é a hormonioterapia cruzada, em que um paciente de um sexo biológico recebe hormônios do gênero oposto, provocando algumas alterações corporais.
Em crianças, não há a hormonização. O único procedimento possível, quando se conclui com pais e especialistas ser necessário, é o bloqueio da puberdade, que pode ser adiada até que o jovem seja maior de idade e possa decidir se prosseguirá ou não. Caso não prossiga, o fim do bloqueio já acarreta na puberdade e no desenvolvimento regular.
Para pessoas adultas, existem cirurgias. Homens trans podem realizar, se julgarem coerente com a sua identificação, cirurgias para a retirada de mamas. Além da cirurgia de redesignação sexual em si, que utiliza os tecidos das genitálias para a readequação.
Tudo, reforça o psiquiatra, acompanhado de exames que validem a possibilidade das cirurgias e os laudos necessários.
Há ainda a transição social, com a alteração de nome e registro civil em documentos. Por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2018, pessoas trans podem solicitar a mudança independentemente de terem se submetido ou não à cirurgia de redesignação sexual.
A Antra, associação das pessoas trans, mantém aberto um canal de denúncia, voltado a permitir que sejam reportados casos, ainda recorrentes segundo a entidade, de cartórios que se negam a proceder a alteração do registro.
Pandemia
A pandemia da Covid-19 agravou um problema que, para as pessoas trans, é ainda mais grave: o desemprego. Pesquisa da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo, que será divulgada na íntegra também nesta sexta-feira (29), registra que as pessoas transsexuais estão majoritariamente excluídas do mercado de trabalho formal.
“Quando a pessoa trans chega à idade adulta, a grande angústia é a busca por ser reconhecida como se identifica no trabalho e na sociedade, assim como a possibilidade de ter uma relação afetiva saudável”, relata Alexandre Saadeh.
Durante a pandemia, o Amtigos precisou reduzir os atendimentos, principalmente de novos pacientes.
“Como atendemos crianças, é praticamente inviável criar um espaço seguro em uma consulta online para que a criança se sinta à vontade de falar como se sente”, explica.
A retomada parcial das atividades permitiu o acompanhamento dos pacientes que já estavam, sobretudo o atendimento e orientação dos pais.
Cirurgias e procedimentos também são afetados, uma vez que são considerados “eletivos”, intervenções médicas que não representam urgência para a sobrevivência física. Durante a pandemia, procedimentos do tipo, de todas as vertentes médicas, foram suspensos ou postergados, em razão da ocupação de leitos e direcionamento de insumos para o tratamento da Covid-19.
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