Mais da metade reprova na prova prática da CNH; como o RS forma motoristas e o que pode mudar
- Saimon Ferreira

- há 2 horas
- 7 min de leitura
No Rio Grande do Sul, apenas 39% dos candidatos conseguem aprovação na primeira tentativa do exame prático da habilitação para automóveis

O candidato ajusta o banco, confere o retrovisor, respira fundo. O examinador observa em silêncio. Um erro mínimo — esquecer a seta, deixar o carro morrer, tocar levemente no meio-fio — pode encerrar ali um processo que levou meses.
A prova prática da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), tradicionalmente o momento mais temido para os candidatos, passa agora a ocupar um papel ainda maior.
Com a redução drástica da formação obrigatória, ela se consolida como o principal filtro para definir quem está (ou não) apto a dirigir.
No Rio Grande do Sul, apenas 39% dos candidatos conseguem aprovação na primeira tentativa da prova prática da categoria B, para automóveis.
O dado ajuda a dimensionar o desafio: mesmo com um modelo que exigia, até agora, 20 horas mínimas de aulas práticas, a maioria dos futuros condutores precisou de mais tempo ao volante para se sentir preparado.
A nova legislação, no entanto, estabelece um piso de apenas duas horas práticas obrigatórias.
Como era a formação do condutor até agora
Até a mudança, o processo de habilitação no RS seguia uma lógica pedagógica estruturada. O candidato passava por aulas teóricas presenciais, com 18 horas de legislação de trânsito, 16 horas de direção defensiva, além de conteúdos sobre cidadania, meio ambiente e primeiros socorros.
Na prática, realizava cerca de 20 aulas, sob acompanhamento de instrutor credenciado.
Segundo o presidente do Sindicato dos Centros de Formação de Condutores do Rio Grande do Sul (SindiCFC-RS), Vilnei Sessim, esse modelo não era genérico:
— O plano pedagógico do CFC (Centro de Formação de Condutores) não é um plano geral. Ele é feito para cada condutor. O instrutor precisa se adaptar ao aluno, porque cada pessoa aprende de um jeito. Por isso existe o diretor de ensino.
Mesmo assim, os números mostram que aprender a dirigir com segurança já não era simples. Em 2025, até o mês de setembro, o RS registrou 283.384 provas práticas da categoria B, com aprovação de apenas 39% (110.519).
Já entre os motociclistas, grupo considerado mais vulnerável, foram 54.146 exames práticos, com índice de aprovação de 68% na categoria A. No exame teórico, o índice de aprovação foi de 70,47%.
O que muda a partir da nova regra
A nova legislação reduz a exigência mínima para duas horas de aulas práticas e substitui o curso teórico tradicional por uma plataforma online gratuita, oferecida pelo governo federal, com duração inferior a uma hora.
Para Sessim, a mudança representa um corte profundo no processo de formação.
— Hoje, o candidato tinha 18 horas de código de trânsito, legislação, 16 horas de direção defensiva. Agora, ele faz esse mesmo curso em menos de 40 minutos. É inacreditável que todo o conhecimento que o MEC (Ministério da Educação) indicou como necessário seja suprimido dessa forma — aponta.
Na avaliação do setor, não se trata apenas de flexibilização, mas de uma inversão de lógica: menos formação inicial e mais dependência do exame como filtro.
— Se continuarmos com a prova como é feita hoje no RS (por enquanto sem alterações previstas), que é uma prova de nível médio, a expectativa é de que os condutores vão precisar fazer mais aulas (além das duas horas mínimas) para aprender a dirigir. E isso vai ficar na mão do examinador do Detran — afirma Sessim.
Exame prático passa a ser o grande filtro
No Detran do Rio Grande do Sul (DetranRS), a expectativa é de queda ainda maior nos índices de aprovação.
O chefe da Divisão de Exames para a Habilitação Veicular, João Antônio Jardim Silveira, avalia que a mudança altera profundamente o cenário.
— Diminuindo de 20 aulas para duas, acreditamos que vai cair bastante o índice de aprovação. O Rio Grande do Sul sempre formou muito, sempre exigiu formação, com aulas fiscalizadas e monitoradas — detalha.
Ele lembra que algo semelhante ocorreu no período pós-pandemia, quando candidatos que haviam feito aulas anos antes tentaram refazer o exame:
— Na categoria B, tivemos um decréscimo de cerca de 10% na aprovação. Se hoje estamos em 39%, naquele momento cairia para algo em torno de 29%.
Com menos formação prévia, o exame prático tende a assumir um papel ainda mais decisivo.
— O exame vai ser o filtro. Por isso, o cuidado com o local, com o examinador, com o regramento e com a transparência do processo é fundamental — ressalta Silveira.
Para quem está diariamente dentro do carro de instrução, a preocupação é menos abstrata e mais imediata. Instrutora de trânsito em Porto Alegre, Paula Tatiane Roeper afirma que a principal consequência da mudança é a perda de informação e de vivência orientada no trânsito.
— Hoje nós temos um processo de cerca de 45 horas, em que trabalhamos dinâmica, didática, simulado, atividades em grupo e conversa do dia a dia. É ali que o aluno começa a entender o trânsito para além do volante — explica.
Ela cita, por exemplo, aulas introdutórias oferecidas pelos CFCs para que o candidato conheça o carro, o ambiente e a lógica do processo de habilitação, etapas que deixam de existir com o novo modelo.
— O nosso maior interesse é que o aluno saia daqui feliz e habilitado, porque amanhã ou depois a minha filha vai estar andando do lado do teu carro. E a minha preocupação hoje é que tipo de condutor vai estar do lado dela amanhã — indaga.
Para Paula, a redução drástica da carga prática reforça uma falsa sensação de preparo, baseada na experiência informal.
— As pessoas imaginam que, porque já dirigem até o mercado ou a padaria, a prova vai ser tranquila. Com 20 aulas já é difícil. Imagina com duas, sem acompanhamento teórico, sem orientação clara de onde parar, de como interpretar uma placa. A placa de "pare" para muita gente já virou "siga" — ironiza.
Na avaliação dela, o debate público acabou concentrado apenas no preço da CNH, deixando em segundo plano o valor do processo formativo.
— As pessoas se preocupam com o preço, não com o valor. Por trás de um CFC tem energia, veículo adaptado, manutenção constante, instrutor, acompanhamento na prova. Isso tudo garante segurança. Sem isso, o tempo vai mostrar a diferença entre preço e valor — conclui.
Quem avalia quem? O peso sobre o examinador
A mudança também desloca a pressão do sistema. Se antes ela recaía sobre os CFCs e instrutores, agora tende a se concentrar no examinador do Detran, responsável por reprovar candidatos que não demonstrem domínio mínimo do veículo e das regras.
— A sociedade procura culpados. Resolve um problema e cria outro. O foco vai acabar no examinador, que será a pessoa que vai reprovar essas pessoas — observa Sessim.
O Detran afirma que pretende reforçar capacitações e manter o rigor técnico.
— A normativa sobre o examinador se mantém, mas teremos uma preocupação maior com capacitações periódicas, padronização de procedimentos e clareza no processo — diz Silveira.
Hoje, os exames já são filmados e lançados em sistema digital, como forma de dar transparência ao resultado.
Impacto humano
Especialistas alertam que a redução da formação pode ter efeitos diretos no cotidiano das cidades. Menos tempo de aula significa menos vivência no trânsito real, menos treino em situações de risco e menor compreensão do comportamento defensivo.
— As pessoas não têm cultura de investir em educação. Vão fazer duas horas de aula, achar que já podem dirigir e tentar várias vezes a prova — diz Sessim, que também é instrutor de trânsito.
Na prática, isso pode gerar condutores inseguros, mais nervosismo ao volante e maior risco de conflitos no trânsito — especialmente entre motociclistas, grupo que já concentra grande parte dos acidentes.
O que muda para quem vai tirar CNH
Para o candidato, o caminho pode parecer mais curto, mas não necessariamente mais fácil. Com menos aulas obrigatórias, a tendência é:
menor preparo inicial
mais reprovações no exame prático
gasto concentrado em novas tentativas de prova
busca por aulas avulsas, muitas vezes sem padronização e com valores mais altos do que a tabela atual
— Não existe mágica. As coisas têm custo: carro, pneu, instrutor, combustível. Não tem como dar aula de graça — finaliza Sessim.
O Detran reforça que seguirá exigindo, no exame, aquilo que considera mínimo para a segurança viária.
— Vamos focar em habilitar quem efetivamente tem condições de estar habilitado — resume Silveira.
Novas regras a partir do dia 5
Em nota oficial publicada na quarta-feira (17), o DetranRS confirmou que as novas regras para a CNH passam a valer no Estado a partir de 5 de janeiro, mesmo diante da ausência de um período formal de transição.
De acordo com o órgão, o fluxo inicial da habilitação funcionará da seguinte forma:
O candidato pode abrir o processo pelo aplicativo Gov.br e iniciar o curso teórico digital ou realizar a requisição diretamente em um CFC
Simultaneamente, pode fazer a coleta biométrica no CFC e agendar os exames de aptidão física e mental
A partir de 5 de janeiro, será possível agendar a prova teórica
Medida de transição: enquanto não houver integração com o banco nacional de questões da Senatran, o DetranRS aplicará a prova teórica no modelo antigo
Após a aprovação no exame teórico, o candidato poderá marcar as aulas práticas, com carga mínima obrigatória de duas horas-aula
Quando se considerar apto, o candidato agenda o exame prático, realizado no CFC
O exame de direção veicular seguirá o modelo atualmente vigente, até que a Senatran atualize o Manual Brasileiro de Exames de Direção Veicular
O exame toxicológico só será exigido após regulamentação específica pelo Contran, conforme autorização da Senatran
O DetranRS reforça que, neste momento, instrutores autônomos e uso de veículo próprio ainda dependem de regulamentação, o que impede sua aplicação imediata no Estado.
Além disso, os candidatos que preferirem podem realizar todo o processo pelas regras antigas, enquanto os ajustes no sistema são concluídos.






























Comentários