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Mais de 2 mil demissões e um modelo em xeque: o futuro incerto dos CFCs com as novas regras da CNH

  • Foto do escritor: Saimon Ferreira
    Saimon Ferreira
  • há 10 horas
  • 7 min de leitura

Dados do setor mostram que os efeitos já começaram antes mesmo da implementação plena das mudanças, com fechamento de unidades e um clima de incerteza que atravessa todo o segmento

Foto: Jonathan Heckler / Agencia RBS
Foto: Jonathan Heckler / Agencia RBS

As novas regras para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) entraram de vez no debate público ao prometerem reduzir custos e simplificar etapas do processo. 


A reação inicial foi de alívio para muitos candidatos, especialmente em um país onde o preço da habilitação pesa no orçamento familiar. 


Mas, apesar da comemoração, cresce uma preocupação estrutural: o que acontece com os Centros de Formação de Condutores (CFCs), com os instrutores e com o próprio modelo de educação para o trânsito construído ao longo de décadas?


No Rio Grande do Sul, onde o sistema de formação é considerado mais rigoroso e organizado do que em boa parte do país, o impacto tende a ser ainda mais profundo. 


Dados do setor mostram que os efeitos já começaram antes mesmo da implementação plena das mudanças, com demissões, fechamento de unidades e um clima de incerteza que atravessa todo o segmento.


Demissões ainda em 2025

Atualmente, o Rio Grande do Sul conta com 263 CFCs, segundo levantamento do Sindicato dos Centros de Formação de Condutores do Rio Grande do Sul (SindiCFC-RS). Desses, 35 estão em Porto Alegre. Ao todo, o setor empregava 9.961 profissionais entre instrutores, atendentes, diretores de ensino e equipes administrativas.


Esse número, porém, já não reflete a realidade atual. Conforme o sindicato, mais de 2 mil trabalhadores foram desligados nos últimos meses, em um movimento que antecede a consolidação das novas regras.


— Ainda é muito recente, mas a ruptura é muito grande. Estamos falando de profissionais qualificados, com uma cultura de ensinar o motorista e formar o cidadão para o trânsito. O risco é perdermos essa cultura — afirma o presidente do SindiCFC-RS, Vilnei Pinheiro Sessim.


Educação flexibilizada, conflito ampliado


O ponto de maior tensão está no deslocamento do eixo do processo: sai a formação estruturada e entra um modelo centrado quase que exclusivamente no exame final. Para os CFCs, isso fragiliza a noção de educação para o trânsito construída desde a entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em 1998.


— Quando você elimina a obrigatoriedade da formação teórica e reduz a prática a duas aulas, não existe mais um processo educativo. Existe apenas um funil para o exame — avalia Sessim.


Segundo ele, a sociedade tende a sentir os efeitos no médio prazo:


— O cidadão vai aprender a dirigir como der, com quem estiver disponível. E vícios de condução se perpetuam. O prejuízo não é só do setor, é coletivo.


O cerne da polêmica está na flexibilização da formação, especialmente no ensino teórico e na carga horária mínima de aulas práticas, que deixa de ser obrigatória nos moldes atuais. Na avaliação do setor, a mudança desloca o foco da educação para o simples cumprimento do exame prático.


— Quando você torna desnecessária a formação teórica e acredita que vídeos de 15 ou 20 minutos substituem um currículo pedagógico, você não está formando ninguém. O objetivo do governo parece ser entregar a carteira, o que é uma competência legítima. Mas a capacidade de conduzir um veículo em via pública é uma exigência da sociedade — critica Sessim.


Para ele, o risco não é apenas econômico, mas social:


— Cada pessoa vai aprender da sua forma. Pessoas com vícios de condução vão ensinar outras pessoas. Isso pode gerar uma barbárie no trânsito.


O que muda com as novas regras


As mudanças anunciadas pelo governo federal não se limitam a ajustes pontuais. Elas redesenham quase integralmente o processo de formação de condutores no Brasil e alteram pilares que, até aqui, estruturavam o funcionamento dos CFCs.

Na prática, o novo modelo prevê:


  • Fim da obrigatoriedade das aulas em autoescolas: o candidato não é mais obrigado a realizar todo o processo formativo dentro de um CFC

  • Curso teórico gratuito e digital: o conteúdo passa a ser disponibilizado gratuitamente em plataforma federal e aplicativo oficial

  • Extinção da carga horária mínima do curso teórico: deixa de existir a exigência formal de horas-aula presenciais ou controladas

  • Flexibilização do aprendizado prático: o candidato poderá utilizar veículo particular e contratar instrutor autônomo credenciado, desde que haja regulamentação

  • Redução drástica das aulas práticas obrigatórias: a carga mínima cai de 20 para 2 horas-aula

  • Manutenção das etapas presenciais essenciais: prova prática, exame médico, avaliação psicológica e coleta biométrica seguem obrigatórios e presenciais

  • Reprovação sem custo adicional na primeira tentativa: quem não passar no primeiro exame prático poderá refazer a prova gratuitamente

  • Fim do prazo máximo do processo de habilitação: hoje limitado a um ano, o processo deixa de ter validade temporal


O governo federal estima que esse conjunto de mudanças possa reduzir em até 80% o custo da CNH, que atualmente pode chegar a R$ 5 mil, dependendo do Estado e do número de reprovações. Para o setor de CFCs, no entanto, o debate central não é apenas econômico, mas pedagógico e de segurança viária.


Aprovação baixa hoje; cenário ainda mais incerto amanhã


Mesmo com o modelo atual, os índices de aprovação já são baixos. No RS, a média de aprovação no exame prático gira em torno de 35%, considerando o mínimo obrigatório de 20 horas de aula prática.


— Será que com duas horas vai melhorar a apuração? Vai melhorar o índice de mortes? — questiona o presidente do SindiCFC.


No CFC Tour Inn, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, os números internos reforçam o receio. O diretor de ensino Kleit​on Costa relata que a aprovação média da unidade ficou em 22% no último levantamento.


— Apenas 2% ou 3% dos alunos fazem só as 20 aulas. Cerca de 95% precisam de 28 a 30 aulas para chegar preparados à prova. Com duas aulas, não existe sistema pedagógico capaz de formar alguém — afirma.

A preocupação é ainda maior no caso das motocicletas, que exigem infraestrutura específica:


— Temos pista coberta, instrutor dedicado, tudo isso pago pelo CFC. Se as pessoas não fizerem aulas, como manter essa estrutura? — questiona.


"O problema não é preço, é valor"


Entre os instrutores, a sensação é de que a discussão pública se concentrou quase exclusivamente no custo da CNH, deixando em segundo plano a qualidade da formação. A instrutora de trânsito Paula Tatiane Roeper, que atua no CFC Tour Inn, resume a crítica:


— As pessoas hoje se preocupam com o preço, não com o valor. Por trás de um CFC existe energia, manutenção de veículos, carros com duplo comando, instrutor qualificado, acompanhamento no dia da prova. Isso não aparece quando se olha apenas o número final.


Ela destaca que o ambiente controlado do CFC oferece segurança tanto para o aluno quanto para a cidade.


— É muito mais seguro aprender dentro de um centro de formação, com veículo adesivado e duplo comando, do que ensinar de forma autônoma no trânsito, em meio a condutores que já não respeitam a lei, crianças e pedestres — pontua.


Reinvenção forçada — ou fechamento


Diante do novo cenário, parte dos CFCs tenta se adaptar. A palavra mais repetida nas reuniões internas é "reinvenção".


— Estamos pensando em um novo modelo de aulas, porque da forma que está sendo aplicado não tem como um centro de formação sobreviver. A gente precisa do público, dos alunos — explica Paula.


Apesar do esforço, o pessimismo é generalizado. No próprio CFC Tour Inn, dois profissionais já foram desligados. A avaliação da direção é dura:


— Eu acredito que a gente não dura seis meses. Não tem como manter um padrão de qualidade como o que existia no Rio Grande do Sul — afirma Costa.

Ele lembra que o modelo gaúcho é uma exceção no país. 


— Aqui, o CFC é uma concessão do Estado, com regras rígidas, aulas tabeladas e processo igualitário. Em outros Estados, é muito mais bagunçado. Justamente por sermos mais organizados, vamos sentir mais. Relatos de fechamento já começam a surgir no Interior, com unidades entrando em férias coletivas ou encerrando atividades — lamenta.


Impacto que vai além dos CFCs


A possível retração dos centros de formação não afeta apenas empresários e instrutores. Em cidades pequenas, o fechamento de um CFC pode obrigar o candidato a se deslocar para outros municípios, encarecendo e dificultando o acesso à habilitação.


— Se o Estado perde esse atendimento, quem perde mais é a população — resume o presidente do sindicato.


Para os profissionais que permanecem, a preocupação é com o futuro do trânsito.


— Amanhã a minha filha pode estar andando ao lado de um condutor que não teve formação adequada. A pergunta é: que tipo de motorista vai estar ao lado dela? — questiona Paula.


Posição do DetranRS


Em nota oficial publicada nesta quarta-feira (17), o Detran do Rio Grande do Sul (DetranRS) confirmou que as novas regras para a CNH passam a valer no Estado a partir de 5 de janeiro, mesmo diante da ausência de um período formal de transição.


Segundo a autarquia, após consulta à Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) e diante das profundas mudanças introduzidas pela Resolução nº 1.020/2025 do Contran, pela Medida Provisória nº 1.327/2025 e pela Lei nº 15.153/2025, foi necessário adotar um modelo híbrido, mesclando procedimentos antigos e novos.


"Para que os candidatos não fossem prejudicados, essa foi a solução possível para iniciar a aplicação imediata das novas regras", informou o DetranRS.


A diretora-geral adjunta do órgão, Isabel Friski, afirmou que a determinação do governador Eduardo Leite foi pela rápida adaptação.


"O governador determinou que as adequações fossem feitas o mais rápido possível. Com uma força-tarefa entre DetranRS e Procergs, conseguiremos disponibilizar o sistema já no início de janeiro", afirma, em nota.


Como ficará o processo no RS


De acordo com o DetranRS, o fluxo inicial da habilitação funcionará da seguinte forma:


  • O candidato pode abrir o processo pelo aplicativo Gov.br e iniciar o curso teórico digital ou realizar a requisição diretamente em um CFC

  • Simultaneamente, pode fazer a coleta biométrica no CFC e agendar os exames de aptidão física e mental

  • A partir de 5 de janeiro, será possível agendar a prova teórica

  • Medida de transição: enquanto não houver integração com o banco nacional de questões da Senatran, o DetranRS aplicará a prova teórica no modelo antigo

  • Após a aprovação no exame teórico, o candidato poderá marcar as aulas práticas, com carga mínima obrigatória de duas horas-aula

  • Quando se considerar apto, o candidato agenda o exame prático, realizado no CFC

  • O exame de direção veicular seguirá o modelo atualmente vigente, até que a Senatran atualize o Manual Brasileiro de Exames de Direção Veicular

  • O exame toxicológico só será exigido após regulamentação específica pelo Contran, conforme autorização da Senatran


O DetranRS reforça que, neste momento, instrutores autônomos e uso de veículo próprio ainda dependem de regulamentação, o que impede sua aplicação imediata no Estado. Além disso, os candidatos que preferirem podem realizar todo o processo pelas regras antigas, enquanto os ajustes no sistema são concluídos.


Fonte: GZH

 
 
 

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