Mais de 2 mil demissões e um modelo em xeque: o futuro incerto dos CFCs com as novas regras da CNH
- Saimon Ferreira

- há 10 horas
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Dados do setor mostram que os efeitos já começaram antes mesmo da implementação plena das mudanças, com fechamento de unidades e um clima de incerteza que atravessa todo o segmento

As novas regras para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) entraram de vez no debate público ao prometerem reduzir custos e simplificar etapas do processo.
A reação inicial foi de alívio para muitos candidatos, especialmente em um país onde o preço da habilitação pesa no orçamento familiar.
Mas, apesar da comemoração, cresce uma preocupação estrutural: o que acontece com os Centros de Formação de Condutores (CFCs), com os instrutores e com o próprio modelo de educação para o trânsito construído ao longo de décadas?
No Rio Grande do Sul, onde o sistema de formação é considerado mais rigoroso e organizado do que em boa parte do país, o impacto tende a ser ainda mais profundo.
Dados do setor mostram que os efeitos já começaram antes mesmo da implementação plena das mudanças, com demissões, fechamento de unidades e um clima de incerteza que atravessa todo o segmento.
Demissões ainda em 2025
Atualmente, o Rio Grande do Sul conta com 263 CFCs, segundo levantamento do Sindicato dos Centros de Formação de Condutores do Rio Grande do Sul (SindiCFC-RS). Desses, 35 estão em Porto Alegre. Ao todo, o setor empregava 9.961 profissionais entre instrutores, atendentes, diretores de ensino e equipes administrativas.
Esse número, porém, já não reflete a realidade atual. Conforme o sindicato, mais de 2 mil trabalhadores foram desligados nos últimos meses, em um movimento que antecede a consolidação das novas regras.
— Ainda é muito recente, mas a ruptura é muito grande. Estamos falando de profissionais qualificados, com uma cultura de ensinar o motorista e formar o cidadão para o trânsito. O risco é perdermos essa cultura — afirma o presidente do SindiCFC-RS, Vilnei Pinheiro Sessim.
Educação flexibilizada, conflito ampliado
O ponto de maior tensão está no deslocamento do eixo do processo: sai a formação estruturada e entra um modelo centrado quase que exclusivamente no exame final. Para os CFCs, isso fragiliza a noção de educação para o trânsito construída desde a entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em 1998.
— Quando você elimina a obrigatoriedade da formação teórica e reduz a prática a duas aulas, não existe mais um processo educativo. Existe apenas um funil para o exame — avalia Sessim.
Segundo ele, a sociedade tende a sentir os efeitos no médio prazo:
— O cidadão vai aprender a dirigir como der, com quem estiver disponível. E vícios de condução se perpetuam. O prejuízo não é só do setor, é coletivo.
O cerne da polêmica está na flexibilização da formação, especialmente no ensino teórico e na carga horária mínima de aulas práticas, que deixa de ser obrigatória nos moldes atuais. Na avaliação do setor, a mudança desloca o foco da educação para o simples cumprimento do exame prático.
— Quando você torna desnecessária a formação teórica e acredita que vídeos de 15 ou 20 minutos substituem um currículo pedagógico, você não está formando ninguém. O objetivo do governo parece ser entregar a carteira, o que é uma competência legítima. Mas a capacidade de conduzir um veículo em via pública é uma exigência da sociedade — critica Sessim.
Para ele, o risco não é apenas econômico, mas social:
— Cada pessoa vai aprender da sua forma. Pessoas com vícios de condução vão ensinar outras pessoas. Isso pode gerar uma barbárie no trânsito.
O que muda com as novas regras
As mudanças anunciadas pelo governo federal não se limitam a ajustes pontuais. Elas redesenham quase integralmente o processo de formação de condutores no Brasil e alteram pilares que, até aqui, estruturavam o funcionamento dos CFCs.
Na prática, o novo modelo prevê:
Fim da obrigatoriedade das aulas em autoescolas: o candidato não é mais obrigado a realizar todo o processo formativo dentro de um CFC
Curso teórico gratuito e digital: o conteúdo passa a ser disponibilizado gratuitamente em plataforma federal e aplicativo oficial
Extinção da carga horária mínima do curso teórico: deixa de existir a exigência formal de horas-aula presenciais ou controladas
Flexibilização do aprendizado prático: o candidato poderá utilizar veículo particular e contratar instrutor autônomo credenciado, desde que haja regulamentação
Redução drástica das aulas práticas obrigatórias: a carga mínima cai de 20 para 2 horas-aula
Manutenção das etapas presenciais essenciais: prova prática, exame médico, avaliação psicológica e coleta biométrica seguem obrigatórios e presenciais
Reprovação sem custo adicional na primeira tentativa: quem não passar no primeiro exame prático poderá refazer a prova gratuitamente
Fim do prazo máximo do processo de habilitação: hoje limitado a um ano, o processo deixa de ter validade temporal
O governo federal estima que esse conjunto de mudanças possa reduzir em até 80% o custo da CNH, que atualmente pode chegar a R$ 5 mil, dependendo do Estado e do número de reprovações. Para o setor de CFCs, no entanto, o debate central não é apenas econômico, mas pedagógico e de segurança viária.
Aprovação baixa hoje; cenário ainda mais incerto amanhã
Mesmo com o modelo atual, os índices de aprovação já são baixos. No RS, a média de aprovação no exame prático gira em torno de 35%, considerando o mínimo obrigatório de 20 horas de aula prática.
— Será que com duas horas vai melhorar a apuração? Vai melhorar o índice de mortes? — questiona o presidente do SindiCFC.
No CFC Tour Inn, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, os números internos reforçam o receio. O diretor de ensino Kleiton Costa relata que a aprovação média da unidade ficou em 22% no último levantamento.
— Apenas 2% ou 3% dos alunos fazem só as 20 aulas. Cerca de 95% precisam de 28 a 30 aulas para chegar preparados à prova. Com duas aulas, não existe sistema pedagógico capaz de formar alguém — afirma.
A preocupação é ainda maior no caso das motocicletas, que exigem infraestrutura específica:
— Temos pista coberta, instrutor dedicado, tudo isso pago pelo CFC. Se as pessoas não fizerem aulas, como manter essa estrutura? — questiona.
"O problema não é preço, é valor"
Entre os instrutores, a sensação é de que a discussão pública se concentrou quase exclusivamente no custo da CNH, deixando em segundo plano a qualidade da formação. A instrutora de trânsito Paula Tatiane Roeper, que atua no CFC Tour Inn, resume a crítica:
— As pessoas hoje se preocupam com o preço, não com o valor. Por trás de um CFC existe energia, manutenção de veículos, carros com duplo comando, instrutor qualificado, acompanhamento no dia da prova. Isso não aparece quando se olha apenas o número final.
Ela destaca que o ambiente controlado do CFC oferece segurança tanto para o aluno quanto para a cidade.
— É muito mais seguro aprender dentro de um centro de formação, com veículo adesivado e duplo comando, do que ensinar de forma autônoma no trânsito, em meio a condutores que já não respeitam a lei, crianças e pedestres — pontua.
Reinvenção forçada — ou fechamento
Diante do novo cenário, parte dos CFCs tenta se adaptar. A palavra mais repetida nas reuniões internas é "reinvenção".
— Estamos pensando em um novo modelo de aulas, porque da forma que está sendo aplicado não tem como um centro de formação sobreviver. A gente precisa do público, dos alunos — explica Paula.
Apesar do esforço, o pessimismo é generalizado. No próprio CFC Tour Inn, dois profissionais já foram desligados. A avaliação da direção é dura:
— Eu acredito que a gente não dura seis meses. Não tem como manter um padrão de qualidade como o que existia no Rio Grande do Sul — afirma Costa.
Ele lembra que o modelo gaúcho é uma exceção no país.
— Aqui, o CFC é uma concessão do Estado, com regras rígidas, aulas tabeladas e processo igualitário. Em outros Estados, é muito mais bagunçado. Justamente por sermos mais organizados, vamos sentir mais. Relatos de fechamento já começam a surgir no Interior, com unidades entrando em férias coletivas ou encerrando atividades — lamenta.
Impacto que vai além dos CFCs
A possível retração dos centros de formação não afeta apenas empresários e instrutores. Em cidades pequenas, o fechamento de um CFC pode obrigar o candidato a se deslocar para outros municípios, encarecendo e dificultando o acesso à habilitação.
— Se o Estado perde esse atendimento, quem perde mais é a população — resume o presidente do sindicato.
Para os profissionais que permanecem, a preocupação é com o futuro do trânsito.
— Amanhã a minha filha pode estar andando ao lado de um condutor que não teve formação adequada. A pergunta é: que tipo de motorista vai estar ao lado dela? — questiona Paula.
Posição do DetranRS
Em nota oficial publicada nesta quarta-feira (17), o Detran do Rio Grande do Sul (DetranRS) confirmou que as novas regras para a CNH passam a valer no Estado a partir de 5 de janeiro, mesmo diante da ausência de um período formal de transição.
Segundo a autarquia, após consulta à Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) e diante das profundas mudanças introduzidas pela Resolução nº 1.020/2025 do Contran, pela Medida Provisória nº 1.327/2025 e pela Lei nº 15.153/2025, foi necessário adotar um modelo híbrido, mesclando procedimentos antigos e novos.
"Para que os candidatos não fossem prejudicados, essa foi a solução possível para iniciar a aplicação imediata das novas regras", informou o DetranRS.
A diretora-geral adjunta do órgão, Isabel Friski, afirmou que a determinação do governador Eduardo Leite foi pela rápida adaptação.
"O governador determinou que as adequações fossem feitas o mais rápido possível. Com uma força-tarefa entre DetranRS e Procergs, conseguiremos disponibilizar o sistema já no início de janeiro", afirma, em nota.
Como ficará o processo no RS
De acordo com o DetranRS, o fluxo inicial da habilitação funcionará da seguinte forma:
O candidato pode abrir o processo pelo aplicativo Gov.br e iniciar o curso teórico digital ou realizar a requisição diretamente em um CFC
Simultaneamente, pode fazer a coleta biométrica no CFC e agendar os exames de aptidão física e mental
A partir de 5 de janeiro, será possível agendar a prova teórica
Medida de transição: enquanto não houver integração com o banco nacional de questões da Senatran, o DetranRS aplicará a prova teórica no modelo antigo
Após a aprovação no exame teórico, o candidato poderá marcar as aulas práticas, com carga mínima obrigatória de duas horas-aula
Quando se considerar apto, o candidato agenda o exame prático, realizado no CFC
O exame de direção veicular seguirá o modelo atualmente vigente, até que a Senatran atualize o Manual Brasileiro de Exames de Direção Veicular
O exame toxicológico só será exigido após regulamentação específica pelo Contran, conforme autorização da Senatran
O DetranRS reforça que, neste momento, instrutores autônomos e uso de veículo próprio ainda dependem de regulamentação, o que impede sua aplicação imediata no Estado. Além disso, os candidatos que preferirem podem realizar todo o processo pelas regras antigas, enquanto os ajustes no sistema são concluídos.






























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